Uma breve história sobre o Povo Cigano – Pastoral dos Ciganos

Uma breve história sobre o Povo Cigano

Vulgarmente designado por “cigano”, o grupo que assim identificamos possui uma carga histórica de tradição milenar. Ele constitui a parcela de um povo que tem uma origem específica e uma história própria, ainda que espalhada, há muitos séculos, pelos vários cantos do mundo.

Esse povo terá partido, todo ou em parte, da região de Sindh, no actual Paquistão, e chegado ao leste da Europa entre os séculos IX e XI. À semelhança de tantos outros povos que viveram a mesma experiência, também este foi avançando, para se estabelecer, mais ou menos uniformemente e por tempo diferenciado, em todo o continente europeu. Nessa dinâmica de progressão para ocidente podem distinguir-se várias ondas de migrações que, mercê das características próprias e das adquiridas em estadas mais ou menos prolongadas em diferentes zonas geográficas, o dividiram em três grandes grupos:

  • Os Rom, que permaneceram longo tempo no leste europeu;
  • Os Manouches ou Sinti que, após longa permanência na Alemanha, se deslocaram também para França;
  • Os Ciganos que, segundo uns, atravessaram África e, segundo outros, os Balcãs e a Europa Central, para se virem fixar na Península Ibérica.

Foi, portanto, este último grupo que se dirigiu a Portugal, sendo certo que há notícia dele, no século XV, em Aragão e depois em Castela. Em 1499, por decreto dos Reis Católicos, seriam já expulsos de Espanha, o que pode ser motivo da sua passagem para Portugal. Embora alguns documentos façam alusão à presença neste reino de elementos que podem considerar-se do grupo, ainda no século XV, certo é que só no princípio do século XVI temos notícia exacta da sua presença. Fruto do seu conhecimento, escreveria Gil Vicente o Auto das Ciganas, representado na Corte de D. João III, em 1521. A partir do ano seguinte começa a surgir lei escrita visando regê-lo e procurando resolver os problemas que criava à população de Portugal. Mas não uma lei que o protegesse. Por isso, identificado que foi com os marginais da época – aqueles que não tinham terra nem lugar certo na sociedade – precisou, para se defender, de resistir à lei instituída, que o ameaçava. Desse modo foi cristalizando regras consuetudinárias, que se mantiveram em verdadeiro fenómeno de longa duração e que ainda hoje permanecem como lei interna e constituem verdadeiros pilares do grupo.

Sobreviveu, apesar de sucessivos castigos e ameaças. Para perceber a dureza da perseguição basta lembrar que, logo em 1525, D. João III recebeu, nas Cortes que reuniu em Torres Novas, insistentes pedidos para os exterminar, sendo-lhe solicitado que: “…aja por bem que em tempo algum entrem ciganos em vossos reinos, porque deles não resulta outro proveito senão muitos furtos que fazem e muitas feitiçarias que fingem saber…”. Perante a denúncia, D. João III determinou que, daí em diante, “… não entrem ciganos em meus reinos…”. A partir daqui pode dizer-se que se abriu uma contínua perseguição, não hesitando o mesmo rei, no ano seguinte, em 1526, em fazer a primeira lei de expulsão, na qual ficou determinado que “… os ciganos não entrem no reino e que saiam os que nele estiverem”.

Como se verificasse a respectiva permanência, seguiram-se, nos reinados seguintes, novas leis e consequentes julgamentos. Deles resultaram as condenações às galés e ao exílio. Por esta via seguiram os ciganos para África e para o Brasil. Nesse sentido, é interessante recordar uma lei dada pelo rei de Espanha, em 1568 (antes do período da monarquia dual, que ocorreu entre 1580 e 1640), para ser aplicada em territórios da América do Sul, nomeadamente às terras do vice-reinado do Peru que, à época, eram sua pertença. Determinava essa lei, que os portugueses fossem expulsos, pois era grande a “quantidade de portugueses e ciganos” que ali permaneciam. Ora isto prova que, apesar das perseguições, o povo cigano acompanhou a restante população portuguesa em muita da sua aventura de além-mar. O grupo a que esta lei se refere só podia ser oriundo de Portugal, pois o facto da determinação se referir a “portugueses e ciganos” só se explica por falarem a mesma língua.

Mas centremo-nos em Portugal, sintetizando as principais medidas tomadas contra o grupo cigano ao longo de meio século, ou seja, no período que decorreu após as primeiras disposições de D. João III, a que já aludimos:

  • D. João III – 1538: “… que nenhum cigano, assim homem como mulher, entre em meus reinos e senhorios…” e “… entrando, sejam presos e publicamente açoutados com baraço e pregão”;
  • Regência de D. Catarina – 1557: repete-se a ordem de expulsão e acrescenta-se a pena de condenação às galés para os que não obedecerem;
  • D. Sebastião – 1573: repete as determinações anteriores, mas acrescenta que as mulheres não podem ser condenadas às galés, sendo-lhe aplicadas todas as outras penas;
  • D. Henrique – 1579: determina que se façam pregões em todos os lugares públicos, ordenando que os ciganos saiam do reino dentro de 30 dias; acrescenta que “qualquer um que seja achado fora deste tempo seja logo preso e açoitado publicamente no lugar onde for achado e degredado para sempre para as galés”;
  • Filipe I – 1592: faz nova ordem de expulsão do reino, a cumprir no prazo de 4 meses. Em alternativa, os ciganos deveriam fixar residência e deixar a vida nómada. Determina a pena de morte, sem apelo nem agravo, para todos os que se encontrassem, depois daquele prazo, a vagabundear pelo reino;
  • Filipe II – 1606: verificando-se o não cumprimento das leis anteriores, determinava-se novamente a expulsão dos ciganos. Acrescentava-se, para os prevaricadores, a pena de degredo e condenação às galés;
  • Filipe II – 1613: proibição de aceitar os ciganos como residentes no reino e determinação de expulsão de todos os que se aí se encontrassem, no prazo de 15 dias; acrescentavam-se penas idênticas às anteriores;
  • D. João IV – 1647: autorização para que os ciganos pudessem fixar residência nas seguintes localidades: Torres Vedras, Leiria, Ourém, Tomar, Alenquer, Montemor-o-Velho e Coimbra. Ficavam, no entanto, proibidos de falar a sua língua e a ensinarem aos filhos, bem como de usarem os seus fatos. Determinava-se ainda a obrigatoriedade de trabalharem. E os filhos com mais de 9 anos seriam tirados aos pais, indo servir para casas de não ciganos;
  • D. João IV – 1650: os ciganos foram aceites para servir nas fronteiras, respeitando as normas de fixação já impostas; determinava-se a pena de condenação às galés para os homens e degredo para Cabo Verde e Angola para as mulheres que não cumprissem a lei;
  • D. João IV – 1654: ordem de prisão para todos os ciganos que fossem encontrados no reino a vadiar;
  • D. Pedro II – 1689: os ciganos nascidos no reino eram novamente proibidos de vagabundear ou trazer trajes ciganos; deveriam fixar-se e viver como os restantes naturais do reino. Pena de morte para os incumpridores;
  • D. João V – 1707: decreto de expulsão de todos os ciganos do reino;
  • D. João V – 1708: nova decisão de expulsão, mas aceitando que os ciganos nascidos no reino e sedentarizados pudessem ficar;
  • D. João V – 1718: ordem geral de prisão e degredo para a Índia aos prevaricadores;
  • D. João V – 1745: nova lei de expulsão;
  • D. José – 1751: repetição das leis de expulsão total;
  • D. José – 1756: decretada pena de prisão a todos os ciganos perturbadores da ordem; obrigatoriedade de trabalharem nas obras públicas da cidade, até haver navios que os transportassem para Angola;
  • D. Maria – 1800: nova perseguição aos ciganos. Determinação de que se lhes retirassem as crianças, que seriam entregues à Casa Pia.

Facilmente se observa que toda esta legislação é repressiva. Exceptuam-se, em tempos de D. João IV, algumas determinações, o que se compreende pela necessidade sentida de homens na defesa da independência, em processo de restauração. Pode, contudo, dizer-se que, a partir da segunda metade do século XVII, se nota alguma aceitação quando se trata de ciganos nascidos em Portugal, mas sempre com a obrigatoriedade de nivelarem pelos hábitos da população maioritária.

Foi necessário esperar a revolução liberal para se verificar uma alteração de fundo. Com efeito, em

  • 1822 – Era concedida a cidadania a todos os ciganos nascidos em Portugal.

Vislumbra-se então um processo mais humanizado. Assim:

  • 1852 – Não se podem condenar apenas por serem ciganos. Serão objecto de tratamento igual ao da restante população e as condenações deverão decorrer dos actos praticados e não da etnia a que pertencem.
  • 1920 – Consagra-se “… a igualdade, do ponto de vista jurídico”.

No entanto, este conceito de igualdade era aplicado com reservas para os grupos considerados de risco. Por isso se determinou também “ … Prevenção, relativamente a ciganos… vadios, mendigos, loucos, meretrizes, rufiões … ”.

Só em 1985 foi revogada a lei de 1920.

Enfim, a actual Constituição da República Portuguesa consagra, no seu artigo 13, que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social”.

Ora, esta longa história de perseguições não conseguiu exterminar um povo. Antes contribuiu para que

  • Tentando passar despercebido, se escondesse, acentuando o nomadismo;
  • Criasse regras de defesa interna, omitindo voluntariamente os membros eventualmente procurados pela justiça;
  • Fortalecesse os mecanismos de defesa na família, na qual se acentuou a obrigação de vingar qualquer membro que tivesse sido ofendido;
  • Cristalizasse regras e leis próprias, que foram o suporte da sobrevivência do grupo.
Uma breve história do povo cigano

Uma breve história do povo cigano

As significativas alterações ocorridas na sociedade portuguesa a partir da década de 60 do século passado acabariam por ser também o motor de mudanças na vida do próprio cigano. A atracção pela grande cidade, fenómeno nacional que arrastou as populações para o litoral, não poupou esta população. Progressivamente, o cigano foi-se acercando da grande cidade, disposto a ficar; primeiro timidamente, muitas vezes apenas durante uma parte do ano; depois foi permanecendo cada vez mais tempo, acabando por se fixar. As dificuldades económicas, no entanto, levaram-no a buscar casas modestas, engrossando, na sua grande maioria, os bairros limítrofes onde proliferavam barracas. Por isso, nos planos de realojamento dos vários municípios, grande número de famílias acabaria por ser abrangido e beneficiado.

Assim o encontramos hoje na “grande Lisboa”.

Tem o estatuto de cidadão, mas não se pense que o caminho se tornou mais fácil. Ele continua a lutar, não com a “garra” dos que procuram e defendem um território que reclamam como seu, mas como força real de pessoas que, com dificuldades de inserção nesta sociedade que escolheram para viver, são o grito de denúncia que pretende, na prática, o reconhecimento dos direitos teoricamente adquiridos na longa luta da História – a casa, a saúde, a escola, o emprego.

Por isso continua a lutar, ciente de que uma boa integração social da etnia pressupõe uma formação escolar e técnica, que lhe facilite o relacionamento com entidades e instituições, o diálogo sem barreiras nem constrangimentos com os elementos da maioria e o acesso ao mundo do trabalho, que hoje vai dando novos, mas tímidos, passos.

Se é certo que grande número de famílias possui actualmente casa, tendo beneficiado dos planos de realojamento implementados pelas respectivas Câmaras Municipais, não é menos verdade que quase todas sofreram experiências difíceis, numa longa permanência em barracas, com tudo o que essa situação acarreta de falta de condições e insegurança. Por isso, como tantas outras famílias, alegraram-se com a possibilidade de iniciarem uma nova etapa das suas vidas, num espaço diferente que passaram a gerir.

Mas, cabe perguntar: será que as reminiscências de um passado, com experiência de organização espacial em tenda, se repercutem na vida de hoje? Será que o terem-se constituído como habitantes de bairros de barracas veio a produzir marcas que se verificam, são reais e perduram? Como aproveita e organiza o cigano o novo espaço em que se insere?

São estas algumas das múltiplas questões que se podem colocar a quem conhece pouco deste grupo. Com este texto fica também o convite ao conhecimento de uma comunidade que se organiza no meio da sociedade maioritária. Nela, ainda que formando unidade, se devem distinguir alguns núcleos específicos, que a seguir enumeramos:

  • Família: foi por ela que se deu a aproximação à cidade. O cigano não partiu isolado. Foi e é no seu núcleo familiar que vive e faz a experiência de uma habitação “em altura”, por contraste com a aliança anterior de relação permanente com a rua. Por isso nem sempre é fácil a utilização dos espaços comuns nos prédios, que deve partilhar com vizinhos de diferentes proveniências e etnias.

Mas nessa nova realidade de vida mantêm-se as regras internas, da casa e da família, garantindo a relação forte e enriquecedora entre gerações.

Uma breve história do povo cigano

Uma breve história do povo cigano

  • Interiores: numa casa finalmente obtida, inicia-se uma nova experiência. Mas as vivências anteriores persistem no espaço agora compartimentado. A tradição dos arranjos, da organização em tenda ou mesmo barraca é, em muitos aspectos, transferida para a nova habitação.
  • Crianças: presentes em todas as famílias, são os pequenos príncipes reinantes – objecto de amor e a alegria de todo o grupo.
  • Jovens: são o orgulho da família! São a sua riqueza e o projecto certo e permanente, garante de continuação da existência de “bons ciganos”.
  • Velhos: pela aprendizagem que fizeram ao longo da vida, eles são os detentores da Sabedoria. A sua palavra é ouvida com respeito por todos.
  • Exteriores: a longa vivência do nomadismo, marca de várias gerações, produz um constante apelo ao contacto com o exterior. O cigano precisa de liberdade de movimentos, de espaço aberto. Na cidade, na casa, a desejada interacção com o espaço tem paralelo nos contactos com os vizinhos – que podem ser informais ou de negócio – mas são essenciais à harmoniosa vivência no bairro. Por isso o convívio, guardadas embora as distâncias ditadas pelo desejo intrínseco de manter uma identidade, pode levar à solidariedade e à descoberta de valores recíprocos que ajudam ao respeito mútuo e à valorização de cada pessoa.

Lisboa, 2016

Manuela Mendonça

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